A Associação de Notários e Registradores da Paraíba (Anoreg/PB) conversou com Rodrigo Clemente de Brito Pereira, advogado do Colégio Notarial do Brasil – seção Paraíba (CNB/PB) para entender o assunto.
Em um movimento que pode transformar o cenário jurídico brasileiro, o conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Marcos Vinícius Jardim, apresentou um requerimento ao corregedor nacional de Justiça, ministro Luiz Felipe Salomão. A solicitação visa o estabelecimento de uma regulamentação específica para a realização de inventários extrajudiciais, mesmo quando há herdeiros incapazes envolvidos.
O requerimento de Jardim é um passo significativo no sentido de desjudicializar processos consensuais, aumentando a celeridade e eficiência na resolução de questões sucessórias. Esta proposta vai ao encontro de uma demanda crescente por soluções mais ágeis e menos burocráticas no âmbito familiar.
Além disso, há um movimento crescente pela autorização e regulamentação da dissolução conjugal e de inventários por meio de serviços extrajudiciais, mesmo em casos que envolvam filhos menores e incapazes, desde que o processo seja consensual. Esta medida tem o potencial de simplificar processos e reduzir a sobrecarga do sistema judiciário.
Atualmente, oito estados brasileiros já permitem a realização de inventários e dissoluções conjugais extrajudiciais: Acre, Bahia, Maranhão, Mato Grosso, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Santa Catarina. No Estado de São Paulo, a prática também é cada vez mais comum, com muitos alvarás já emitidos.
A implementação dessas regulamentações representa uma evolução significativa no direito de família, alinhando-se com a tendência global de modernização e simplificação dos procedimentos jurídicos.
Para obter uma compreensão mais aprofundada, a Associação de Notários e Registradores da Paraíba (Anoreg/PB), entrevistou Rodrigo Clemente de Brito Pereira, advogado do Colégio Notarial do Brasil – Seção Paraíba (CNB/PB), que forneceu uma explicação detalhada sobre o assunto.
Anoreg/PB – Qual é a sua opinião sobre a proposta de regulamentar o inventário extrajudicial com a presença de menores como herdeiros? Quais vantagens e desafios você enxerga nessa mudança?
Rodrigo Clemente de Brito Pereira: Sou favorável à proposta de regulamentar o inventário extrajudicial com herdeiros menores. Enxergo que tal possibilidade traz consigo uma série de vantagens e desafios.
Como principais vantagens do inventário extrajudicial com herdeiros menores, posso elencar a maior celeridade em relação aos inventários judiciais, a desburocratização, evitando a sobrecarga do Poder Judiciário, e a possibilidade de uma resolução mais ágil e menos custosa para as partes interessadas e para o Estado.
Importante ressaltar também que a faculdade do inventário extrajudicial não exclui a possibilidade de, diante de situações específicas mais complexas, por exemplo, com litígios entre herdeiros, recorrer ao processo judicial, para garantir uma solução imparcial, justa e equilibrada.
Por outro lado, o grande desafio de tal regulamentação é garantir a proteção dos direitos dos menores, pois, em um inventário extrajudicial, a supervisão judicial é reduzida, o que pode deixar os menores mais vulneráveis a decisões que não lhe sejam totalmente benéficas.
Para assegurar a proteção dos interesses dos menores, seria necessário um sistema robusto de tutela ou curadoria, com atuação transparente e no melhor interesse do menor. Nesse contexto, a previsão de mecanismos de controle e fiscalização é essencial para evitar abusos e garantir que os interesses dos menores sejam sempre priorizados.
Além disso, os tabeliães precisam estar adequadamente preparados para lidar com a presença de menores no processo de inventário, o que exige conhecimentos específicos sobre Direito de Família e Sucessões, bem como a habilidade de mediar conflitos de forma eficaz. Por isso, a capacitação é crucial para o sucesso dessa mudança.
Anoreg/PB – Em termos de segurança jurídica, quais são as principais precauções que devem ser adotadas para garantir os direitos dos menores em inventários realizados por escritura pública?
Rodrigo Clemente de Brito Pereira: Para garantir a segurança jurídica e proteger os direitos dos menores em inventários realizados por escritura pública, é fundamental adotar diversas precauções, entre as quais:
1. Nomeação de tutor ou curador de confiança e apto a defender, de forma transparente, os interesses do menor, com fiscalização e revisão periódica de sua atuação;
2. Supervisão do Ministério Público, cuja participação pode ser através de uma avaliação da minuta do inventário, previamente à lavratura da escritura;
3. Avaliação imparcial e transparente dos bens objeto do inventário, para assegurar uma partilha justa;
4. Garantias de participação do menor, de verificação de seu consentimento, quando em idade que já possa expressar sua opinião, e de que seja assistido adequadamente por advogado com expertise em Direito de Família e das Sucessões;
5. Homologação judicial da partilha final, garantindo uma camada extra de supervisão e validação jurídica;
6. Utilização do processo eletrônico (por exemplo, o PJE), para manter, de forma transparente e de fácil acesso, o registro de todas as etapas do processo de inventário, incluindo decisões, avaliações, consentimentos, intervenções do MP e homologação pela autoridade judicial.
Anoreg/PB – Como a regulamentação dessa prática pode impactar a celeridade e a eficiência dos processos sucessórios e de dissolução conjugal, especialmente em casos consensuais?
Rodrigo Clemente de Brito Pereira: A regulamentação dos inventários e partilhas extrajudiciais com herdeiros menores pode ter um impacto significativo na celeridade e eficiência dos processos sucessórios e de dissolução conjugal, especialmente em casos consensuais, porque minimiza a quantidade de etapas e prazos, reduzindo o tempo de tramitação do processo e aumentando a eficiência administrativa, além de diminuir a necessidade de intervenção do Ministério Público e do Juiz, reservando-lhes um papel mais voltado à revisão e à aprovação do acordo formalizado através da escritura pública lavrada pelo tabelião.
Mesmo em casos não consensuais, o extrajudicial pode se revelar em um meio mais célere e eficiente para a solução de processos sucessórios e de dissolução conjugal, pois é um ambiente que permite uma maior liberdade para a eleição do notário que irá conduzir o processo, para a escolha e adoção de procedimentos simplificados e também para o uso dos meios autocompositivos de resolução de conflitos, a exemplo da mediação e da conciliação.
Anoreg/PB – Você poderia comentar sobre a interpretação teleológica e sistemática do artigo 610 do CPC/2015 em relação à desjudicialização de procedimentos consensuais, e como isso justifica a inclusão de menores nos inventários extrajudiciais?
Rodrigo Clemente de Brito Pereira: A leitura literal da primeira parte do artigo 610 do CPC/2015, a princípio, afasta a possibilidade de inventário extrajudicial quando há testamento ou interessado incapaz, pois o referido dispositivo legal estabelece que:
“Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; não o havendo, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, nas hipóteses previstas em lei.”
Contudo, a partir de uma interpretação teleológica e sistemática da legislação, podemos concluir que é possível a desjudicialização de procedimentos consensuais, mesmo quando há testamento ou quando presentes interesses de menores nos inventários extrajudiciais.
Nesse sentido, quanto aos inventários com testamento, em 15 de outubro de 2019, a Quarta Turma do STJ, julgando o REsp 1.808.767/RJ, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão – depois de relembrar que “a mens legis que autorizou o inventário extrajudicial foi justamente a de desafogar o Judiciário, afastando a via judicial de processos nos quais não se necessita da chancela judicial, assegurando solução mais célere e efetiva em relação ao interesse das partes” – decidiu que a existência de testamento tido como válido pela Justiça não poderia figurar como empecilho à via administrativa do inventário.
Reafirmando essa orientação jurisprudencial, em 23 de agosto de 2022, a Terceira Turma do STJ, apreciando o REsp 1.951.456/RS, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, anotou que a Exposição de Motivos da Lei Federal n° 11.441/2007 “fixava, como premissa, a litigiosidade sobre o testamento como elemento inviabilizador da partilha extrajudicial”, terminando por decidir que “a via judicial deve ser reservada somente à hipótese em que houver litígio entre os herdeiros sobre o testamento”, em homenagem à autonomia da vontade, à desjudicialização dos conflitos e à adoção de métodos adequados de resolução das controvérsias.
Esses dois precedentes paradigmáticos das duas Turmas de Direito Privado da Corte da Cidadania revelam que, diferentemente do que poderia a literalidade da legislação sugerir, a simples existência de testamento não é empecilho à realização do inventário extrajudicial, não configurando, portanto, um critério válido para a bifurcação entre a via administrativa e a judicial, critério esse que recai muito mais na existência (ou não) de litigiosidade entre os herdeiros sobre o testamento.
A partir da interpretação teleológica e sistemática, é possível desenvolver um raciocínio semelhante, para se concluir que a eventual incapacidade de algum(ns) do(s) herdeiro(s) não deve ser vista como obstáculo intransponível para a realização de inventário extrajudicial.
A interpretação teleológica busca entender a finalidade e os objetivos que o legislador pretendia atingir ao criar uma norma. No caso do artigo 610 do CPC/2015, o objetivo principal é proteger os interesses dos incapazes, garantindo que o processo de inventário e partilha ocorra sob a supervisão judicial, quando houver herdeiros menores ou incapazes. A supervisão judicial busca assegurar que os direitos e interesses desses herdeiros sejam devidamente resguardados, evitando fraudes, erros ou abusos que poderiam prejudicá-los.
A interpretação sistemática, por sua vez, considera o contexto geral do ordenamento jurídico e a relação entre as normas, para entender seu sentido e alcance. Nesse sentido, o artigo 610 do CPC/2015 deve ser analisado em conjunto com outros dispositivos legais que tratam da proteção de incapazes e da desjudicialização de procedimentos consensuais.
A desjudicialização visa simplificar e acelerar procedimentos que, de outra forma, seriam morosos e onerosos, se realizados exclusivamente na esfera judicial. Com a introdução do inventário extrajudicial, o legislador buscou desburocratizar e agilizar processos sucessórios, quando não há conflito de interesses, permitindo que sejam realizados diretamente em cartório por meio de escritura pública.
Desse modo, a interpretação teleológica e sistemática do artigo 610 do CPC/2015 demonstra que a intenção do legislador é proteger os interesses dos menores e incapazes, ao mesmo tempo em que busca promover a eficiência e a desburocratização dos procedimentos. Nesse diapasão, a inclusão de menores nos inventários extrajudiciais se justifica se forem estabelecidas garantias adequadas para proteger seus interesses, combinando a celeridade e eficiência dos procedimentos extrajudiciais com a necessária supervisão e proteção dos direitos dos menores.
Anoreg/PB – Com base na experiência dos estados que já adotaram inventários extrajudiciais com menores, como Acre, Bahia e outros, quais lições podem ser aplicadas na Paraíba para assegurar que os processos sejam conduzidos de maneira justa e eficaz?
A experiência de Estados que já adotaram inventários extrajudiciais envolvendo menores pode oferecer valiosas lições para a Paraíba e para outros Estados da Federação.
No Acre, invocando precedente vanguardista do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Processo n° 1002882-02.2021.8.26.0318), o Juiz da Vara de Registros Públicos e das Sucessões de Rio Branco/AC, Edinaldo Muniz dos Santos, editou a Portaria n° 5.914, de 08 de setembro de 2021, autorizando, no âmbito da competência sucessória daquele Juízo, os tabelionatos de notas acreanos a lavrarem escrituras públicas de inventários extrajudiciais, “mesmo havendo herdeiros interessados incapazes, desde que a minuta final da escritura (acompanhada da documentação pertinente) seja previamente submetida à aprovação desta vara, antecedida, evidentemente, de manifestação do Ministério Público”, resguardando-se, assim, direitos de herdeiro(s) incapaz(es).
Avançando ainda mais na desburocratização da via administrativa dos inventários que envolvam herdeiro(s) incapaz(es), podemos citar o exemplo da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que trouxe a lume, no ano passado, o Provimento n° 006/2023, atualizando a redação do art. 447 do seu Código de Normas Extrajudicial, para prever que a autorização judicial prévia para inventário extrajudicial envolvendo parte(s) incapaz(es) apenas será necessária (exceção) quando a partilha não ocorrer por quinhões ideais idênticos entre os herdeiros, tornando regra, por consequência, a via administrativa mesmo para o inventário que diga respeito a parte(s) incapaz(es).
Além do Acre e do Rio de Janeiro, outros Estados da Federação também já admitem a realização de inventários extrajudiciais com menores, entre os quais podemos citar Santa Catarina, Mato Grosso e Maranhão. Em São Paulo, apesar da ausência de normas administrativas, há uma série de decisões e de alvarás de autorização.
A participação ativa do Ministério Público, a homologação judicial simplificada, a capacitação de notários, a padronização de procedimentos, o acompanhamento contínuo, o incentivo à mediação e a coleta de feedback estão entre as melhores práticas observadas nesses Estados e que podem contribuir para que a adoção na Paraíba e em âmbito nacional também seja bem-sucedida, pois são estratégias essenciais para garantir justiça e eficiência, protegendo os interesses dos menores e agilizando os procedimentos de inventário.
Vale salientar que, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tramita, sob a relatoria do Conselheiro Ministro Luís Felipe Salomão, o Pedido de Providências nº 0001596-43.2023.2.00.0000, com vistas a editar provimento, de âmbito nacional, autorizando e regulamentando a realização de dissolução conjugal e inventários através de serviços extrajudiciais, ainda que envolvam filhos menores e incapazes, quando for consensual. A proposta normativa também inclui a hipótese dos inventários em que o de cujus deixou testamentos.
No âmbito do referido Pedido de Providências, o Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF) protocolou manifestação no dia 11/06/2024, opinando favoravelmente à proposta de regulamentação. Os autos foram conclusos para decisão nesta última semana, mais precisamente no dia 19/06/2024, devendo, em breve, ser objeto de deliberação pelo Plenário do CNJ.
Fonte: Assessoria de Comunicação da Anoreg/PB